quarta-feira, 11 de abril de 2012

As duas canções do Homem

Recebi este texto e vim compartilhar com todos vocês... achei lindo!!!!


Recebi outro dia a carta de uma pessoa amiga e veio junto uma página de jornal. Era uma crônica de Rubem Alves, tratando de um assunto pouco conhecido: os sons secretos da cítara indiana. 
 No começo, confesso que achei o texto um pouco dispersivo. Mas, no fim compreendi a beleza do todo, permeada pela poesia vestida em considerações oportunas, comprometidas com a felicidade do ser humano.
 Bom lembrar, a quem não sabe, que a cítara é composta de duas camadas de cordas superpostas, uma sobre a outra, muito próximas, sem nunca se tocarem.
 A camada de cima é sensibilizada pelo músico, e a de baixo não pode nunca ser tocada pelos dedos. Quem pouco entende dos segredos sonoros pode perguntar-se por que razão um instrumento musical tem cordas que não são tocadas. A beleza desse mistério está justamente na harmonia que enlaça as duas camadas. Os dedos não tocam a de baixo para que suas cordas possam vibrar pela magia de uma coisa muito mais sutil que os dedos. Tangidas pelos sons que brotam das primeiras, elas reverberam e fazem nascer uma outra música, diversa daquela que o artista produziu. Eis o segredo. Eis a sensibilidade. 
Olhemos agora para nós.
 Quem sabe sejamos cítaras humanas, que vivem dentro de um encanto chamado vida, provocado pelo carinho criador de Deus; lá dentro, no fundo de nossa essência, estão as segundas cordas de uma única verdade, que os dedos nunca tocam, mas que fazem ouvir uma outra voz, a vibrar pelos escaninhos do silêncio... Vem de lá uma canção imortal, jamais tocada, mas que, se ouvida, pode dizer muito de nós.
 Talvez seja esta a melodia diferente que os bons médiuns ouvem. Aqueles que lêem com amor o não-dito das palavras humanas, separando a mentira da verdade, o joio do trigo, e escolhendo o bem. Talvez seja, essa música oculta, a melhor definição de amizade.
 Afinal, o que um amigo faz senão educar-se para escutar nosso silêncio, que às vezes busca um abraço, um momento de atenção para aplacar sua melancolia? Um amigo é também algo mais. É aquele que faz do seu sossego um recanto confiável, onde o outro pode guardar seus segredos e não ter medo de perdê-los. Um amigo é aquele onde nossa segunda pauta encontra eco, porque sabe que no âmbito da amizade a solidão é um convite ao recolhimento, para que sejamos ouvidos, para que possamos reverberar. 
Nos braços de um amigo, nossa solidão se dilui no suave aroma da partilha. Você, a quem muitos consideram verdadeiro irmão, pode treinar os ouvidos do sentimento para escutar uma nova melodia.
 Preste, porém, menos atenção no que as pessoas irão tocar e mais nos sons daquelas cordas que nunca serão tangidas. Aproveite, também para apreciar a beleza da música que brota de todo lugar.
 Aí escutará a segunda canção de Deus, convidando-o a que habite uma realidade nova: a de ser, finalmente, um bom e melhor amigo, que com muito amor, aprendeu a chamar os outros para fora da solidão.
 ( Carlos Augusto Abranches, 1993, na Revista Reformador )